terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

C&C: O Garoto-Aranha


Se as pessoas dizem que devemos procurar Deus nos ângulos, eu respondo que então é nas aliterações que vamos provavelmente encontrar o Diabo. Isso mesmo, aliterações. Como, por exemplo, “caça cansada”, “ameixa amarela” ou “Pedro Prado”. É, Pedro Prado é o melhor exemplo. Algumas pessoas culparam os quadrinhos, outras culparam os tios, uns dois ou três até me culparam, mas eu sei que a culpa é das aliterações.

Talvez só eu saiba, mas acho que é assim que as coisas funcionam, com cada verdade sendo clara apenas para uma pessoa, o que quer dizer que só eu, um balconista de loja, sei a verdade sobre a morte de Pedro Prado, enquanto, talvez, só um desses mendigos ou bêbados que abordam as pessoas na rua saiba alguma verdade importante, dessas que mudariam o mundo. Às vezes, imagino pra que pergunta apenas Pedro Prado saberia a resposta. Espero que não fosse nenhuma pergunta muito importante...

Claro que as pessoas que falam só o óbvio foram as primeiras a dizer que foi tudo culpa dos quadrinhos. “Afinal, se ele não lesse aquelas malditas revistas, nada daquilo teria acontecido!” Não sei se isso é verdade. Afinal, certas coisas são tão improváveis que são inevitáveis por si mesmas. É como ganhar na Sena: é tão difícil acertar aqueles seis números que o fato de você ter acertado prova que ninguém além de você poderia acertar. E foi assim com o Pedro. Acho que a morte dele foi decidida antes mesmo dele nascer. É, foi isso, ele morreu em 1962, quando Stan Lee e Steve Ditko publicaram a primeira história sobre um garoto que morava com a tia e andava por aí, pendurado em teias de aranha. Nesse dia, O Pedro, que nem sonhava em nascer (nem sei se os pais dele já tinham nascido) morreu.

Aliterações.

Eu me lembro da primeira vez que ele apareceu na loja, ainda acompanhado do Tio Benjamim, um bom cara, gostava muito do sobrinho. Eu era novato, tinha acabado de ser contratado, e o patrão me mandou atender o garoto. Claro, era um moleque esquisito, muito retraído, aqueles óculos enormes, que eu nunca tinha visto uma criança usando, mas bastante esperto, parecia interessado por tudo. Levou uma edição do “Homem-aranha” e passou a voltar ali todo mês, quase sempre com o Tio. Até a morte do Sr. Benjamim, é claro.
Depois, ele aparecia só de vez em quando; quase sempre eu é que passava na casa dele e largava as revistas lá na porta, coma Dona May. Mas mesmo dentro da timidez e da esquisitice dele, ele sempre foi um garoto legal, e provavelmente teria se tornado um grande homem, um cientista ou algo do tipo, não fossem os dois desastres. Aliterações. Sempre elas.

Tudo começou como uma piada. E se eu tenho alguma culpa pela morte de Pedro foi por causa disso. Mas como um balconista de comic-shop poderia resistir a fazer piada com um garoto chamado Pedro Prado, órfão, que morava com os tios Benjamim e Mayra? Qualquer um que já leu uma revista do Homem-Aranha sabe do que eu estou falando... Ainda mais naquele dia, em que ele estava todo feliz porque tinha finalmente tido coragem de conversar com a vizinha pela qual era apaixonado desde pequeno. Quando ele me contou que ela era ruiva e se chama Maria Julia, foi demais pra mim. Passei a chamar Pedro só de “Garoto-Aranha” e, apesar da timidez, ele até começou a ficar famoso na loja; afinal, coincidências assim são tudo menos comuns (senão, não seriam coincidências, eu acho) e, no meio de um monte de nerds, esse é o tipo de coisa que até causaria inveja. E a brincadeira só aumentou quando encontramos uma revista antiga, uma das primeiras edições brasileiras , acho que ainda da RGE ou da EBAL, em que o tradutor, ainda na onda de adaptar nomes (até algumas décadas atrás, o Brasil era o único páis do mundo onde a namorada do Superman se chamava Mirian Lane) chamava Peter Parker de Pedro Prado, com todas as letras. Mas, por mais estranha que a coincidência seja, o que sempre me deixou intrigado foi o fato de que eu, e não ele, que era apaixonado por quadrinhos e por todos aqueles personagens, tivesse percebido as semelhanças. Ou talvez ele simplesmente não quisesse perceber, não sei.

Claro, no começo era engraçado. Até os tios dele brincavam com isso, serviu até pra que ele ficasse mais solto, mais descontraído. OK, às vezes era realmente assustador, como naquela vez em que ele conheceu uma garota na loja, eles até trocaram telefones e, quando fomos ver o nome dela no papel, estava escrito “Felícia”; ou quando eu conheci um amigo dele, filho de um cônsul americano, chamado “Harry”. Mas só me fazia pensar que o universo pode ser muito mais idiota do que eu jamais imaginaria, e ponto final. Mas, até aí, estava tudo bem. É fácil viver em um mundo idiota. Mas não num mundo trágico.

Foi numa sexta, quando eu estava saindo da loja, que me contaram que o tio dele tinha sido assassinado. Um bandido que tinha acabado de assaltar um Banco quis usar o carro do Sr. Benjamim pra fugir, mas ele resistiu. Pronto, dois tiros no peito, morreu ali mesmo. Só consegui falar com Pedro uns dias depois, já que ele não queria ver ninguém e eu sabia que não era hora de discordar. Abatido, cansado, chegou, pegou uma revista e já ia saindo quando eu me ofereci pra pagar um lanche.
“Foi tudo culpa minha, sabe?” Essa foi a primeira frase dele. “Ele estava lá me esperando, enquanto eu paquerava uma garota idiota. Foi tudo minha culpa.” Minha cabeça fritava com as coincidências, mas eu só ouvia. “Se eu não tivesse me atrasado, ele não estaria lá, entende? Ele ia estar vivo agora...” Eu pensava em alguma coisa pra dizer, afinal, era óbvio que nada daquilo era culpa dele, e nem tinha como ser, aquilo tinha sido uma tragédia e, se alguém era culpado, talvez fosse o governo, ou a violência, ou mesmo o sistema capitalista de produção, mas não aquele garoto de 16 anos sentado na minha frente e me olhando através das lentes mais grossas que eu já tinha visto. “Mas agora eu sei a verdade! Quer ver?” Não fazia a mínima idéia de que verdade seria essa, mas tentei parecer satisfeito e interessado; afinal, o garoto precisava de amigos e de incentivo. Ele me levou pelas escadas até o último andar do shopping, que tinha umas sacadas enormes onde casais ficavam de bobeira, ou coisas do tipo.

Ficamos em uma das sacadas. “Eu entendi tudo, sabia?” Não, eu não sabia. “Pedro Prado, órfão, sobrinho de Ben e May, garoto estudioso, tímido e apaixonado pela vizinha ruiva, Maria Júlia, isso te lembra alguma coisa?” Ok, “Garoto-Aranha”, isso me lembrava o Homem-Aranha, mas e dái? ”E daí?! E daí que eu tenhos tudo isso! Todos os nomes, todas as características, agora a morte do meu tio, você não enxerga?” E o pior é que eu começava a enxergar. Só não imaginava aonde ele queria chegar. “Eu sou o Homem-aranha! É , eu sou o Homem-Aranha! Tudo isso só acontece porque ele, quer dizer, eu , sou real! É isso, entendeu?”
Eu tentei explicar que aquilo era bobagem, eu poderia me chamar “Bruno Breno” e nem por isso seria o Hulk, mas ele não me ouvia. Ele só falava. “E agora eu vou te mostrar, olha só!” E pulou da sacada.

Eu já disse que vários culparam as revistas, os quadrinhos. Alguns culparam a tia que, abalada com a morte do marido, não percebeu a perturbação do sobrinho. Alguns me culparam, porque fui eu que comecei com a história de “Garoto-Aranha”. Lá na loja, alguns culparam a falta de aranhas radioativas no mundo real, ou a falta de senso de oportunidade dos pais dele que, se tivessem lido ao menos uma história em quadrinhos na vida, saberiam que aquele nome era uma péssima idéia. Eu preferi culpar as aliterações. Talvez assim eu culpe também os quadrinhos (Clark Kent, Bruce Banner, Billy Batson, tantos outros...), talvez assim eu me culpe, talvez assim eu culpe o mendigo que sabe a verade sobre o universo, mas não conta pra ninguém. Ou talvez assim toda a culpa seja única e exclusivamente de Pedro Prado, O Garoto-Aranha.

Jluismith - dedicado a Steve Ditko
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Conto de Jluismith (João Jr.) do blog Just Wrapped Up in Books, publicado originalmente no FARRAZINE #12

*A imagem inicial é um desenho de John Romita para capa de Spider-Man: Rock Reflections of a Superhero!

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